A cultura do artesanato

O artesanato para mim não é importante essencialmente como cultura, como resgate de uma forma específica de moldar algum material, como um processo específico que precisa ser preservado como memória. A não ser que quando falamos em cultura pensamos em uma forma de estar no mundo, como um modo de viver. O dia-a-dia voa, então precisamos almoçar em vinte minutos para depois ir ao banco, consertar a sola do sapato que descolou para depois correr para o trabalho. Em vinte minutos abocanhamos um sanduíche, comemos no fast food. Não comemos, engolimos a comida para sobreviver até a noite. Na preparação dessa comida, evidentemente não há possibilidade de preparo como cultura: a variável mais importante é o tempo, o tempo do fast food.

No cinema é a mesma coisa. Numa novela, num filme blockbuster, não há tempo de cozimento desses materiais, não há tempo de o cozinheiro escolher as matérias-primas da refeição com cuidado num certo mercado. Há um caminhão que chega com os produtos em grande quantidade, negociados pelo preço mais barato, e daí em diante.

Até aí tudo bem, porque concordamos com esse pacto demoníaco para ter o conforto da nossa internet e do ar condicionado com cerveja gelada, e pagamos esse preço absurdo por isso. O problema começa quando o consumidor começa a achar que o junk food é mais elaborado que o artesanato. Essa inversão de valores acontece não somente pela falta de educação, de conhecimentos “gastronômicos”, mas por uma imposição de valores, por uma lavagem cerebral que leva o consumidor a supor que “ao comer junk food” ele se insere em um grupo que é mais “bacana” que outro. E o que as pessoas querem no fundo é se inserir em um grupo que seja o maior e mais homogêneo possível.

Aí o artesanato passa a ser cultura, e eu defendo o artesanato como processo de resistência de uma forma de estar no mundo, e aí o artesanato como cultura vira processo político. No final de Desertum, eu fiquei “costurando” os fades, as fusões, a imagem e o som, esperando o tempo de cozimento desses alimentos. Poder saborear esse tempo de cozimento é como esperar o tempo da colheita numa horta, é como esperar o dia após a noite, é como esperar o verão após o inverno, é como esperar a neblina passar, é como esperar adormecer aquele antigo amor que se foi para surgir outro.

Comentários

Anônimo disse…
Acho que o problema não é só uma necessidade se pertencer a um grupo mais bacana, acho que simplesmente estamos desaprendendo a ter tempo pra apreciação. Queremos evasão, sabores rápidos e descartáveis, nos adaptamos a civilização que construimos.
Um dito bem comum é que a cultura é filha do ócio, não como negar que sem tempo, e mais importante, disposição para apreciar esse tempo a arte não avançaria.

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