cinema contemporâneo cearense (II)
Diário Livre
de Ivo Lopes Araújo
**
Diário Livre, último longa de Ivo Lopes Araújo, em sua despretensão, no clima sensorial, em sua possibilidade de mudar de rumo repentinamente, em sua mesma despretensão, remete a um curta anterior do diretor: Eu agora só vejo as luzes do mundo. Como este, deve permanecer pouquíssimo visto, cujo principal objetivo é mais exercitar o olhar, permanecer criando, experimentando novas alternativas, vivendo a partir do processo de criação.
O mote de Diário Livre é o projeto Livro Livre, em que 100 livros com páginas em branco são espalhados em diversos lugares de Fortaleza. Cada pessoa que cruze com o livro pode escrever uma página e deixar o livro em outro lugar, e assim sucessivamente, até que no centésimo dia, os que se interessarem podem entregar o livro num certo ponto de encontro, onde todos poderiam trocar as experiências daquele “livro vivo”. A partir desse mote, Ivo faz um diário aberto, em que acompanha os seus 100 dias desse processo, como se o próprio filme fosse um livro livre, mas com a diferença que é ele próprio quem preenche as suas “cem páginas”.
A idéia de diário está claramente associada ao cinema de Jonas Mekas, ainda mais clara com os “intertítulos” digitados numa máquina de escrever. Mas não há o “cinema epidérmico” típico do superoito e sim um olhar mais contemplativo, típico do realizador cearense, mesclado ainda com fotos pixeladas em PB que dão ao filme um certo clima de nostalgia e de memória.
Do cinema de Mekas (especificamente de Walden) também vem uma idéia de compor uma espécie de crônica indireta de uma comunidade de artistas. Esse contexto surge de forma indireta, já que naturalmente ao longo dos seus cem dias, Ivo cruza com sua rotina de trabalho, seja vivendo o dia-a-dia das atividades do Alumbramento (espécie de pólo de produção do “novo cinema cearense”) seja exercendo a função de diretor de fotografia em trabalhos diversos, seja pesquisando ou realizando seus próprios filmes, seja participando de festivais onde suas obras são exibidas. Vemos então o dia-a-dia da vida em Fortaleza, a viagem para o filme em Recife, o trabalho no novo curta de Petrus Cariry em Fortaleza, sua ida para a Mostra de Tiradentes, sua pesquisa para o documentário sobre a Praia de Iracema.
Ao mesmo tempo em que trabalha, Ivo vive. Primeiro, através de um retrato íntimo de Sabiaguaba, de sua esposa Thaís e de seu filho Ian. O olhar afetuoso para o bebê Ian lembra tanto o cinema de Mekas quanto o anterior Eu agora só vejo as luzes do mundo. É um olhar generoso para Sabiaguaba, bairro interiorano de Fortaleza onde Ivo se refugia. Essa idéia de estar em casa, “descançando” (sic) como ele próprio diz ao longo do filme, entra em contraste quando ele está fora, seja pela solidão dos planos de estrada seja pela saudade de casa anunciada.
Lá pelo terço final do filme, há uma quebra, quando Ivo prepara sua pesquisa para um documentário sobre a Praia de Iracema (P.I.). É quando um tom de entrevistas didáticas e a palavra dominam o filme, quebrando sua abordagem altamente sensorial. Dias depois, surge uma cartela bastante surpreendente, dizendo que o diretor resolveu “jogar tudo fora”. Nesse momento percebemos que o mais importante de Diário Livre é exatamente o seu processo de busca, e não o que se irá encontrar. Deixar o que “se jogou fora” é exatamente parte do processo de busca de Ivo, de voltar atrás, de repensar, pois errar é parte de viver, é parte do processo de criação. Nisso Diário Livre se aproxima, de forma muito indireta, de Santiago.
Daí a coerência de seu final, quando Ivo chega ao centésimo dia e retorna ao projeto Livro Livre. Não sabemos como foi a recepção das pessoas no “ponto de encontro”: essa imagem nos é negada, o filme acaba antes. Não importa onde se vai chegar, e sim o caminho para se chagar até lá, independentemente onde seja.
Embora irregular, Diário Livre é um exercício aberto que fascina pela delicadeza de Ivo em compor um retrato do artista em seu cotidiano em que a criação e a vida se interpolam e se multiplicam. Um olhar generoso, especialmente em relação aos amigos, mas também que marca por um certo sentimento típico de solidão e melancolia, que é afinal a principal característica da obra do Ivo.
de Ivo Lopes Araújo
**
Diário Livre, último longa de Ivo Lopes Araújo, em sua despretensão, no clima sensorial, em sua possibilidade de mudar de rumo repentinamente, em sua mesma despretensão, remete a um curta anterior do diretor: Eu agora só vejo as luzes do mundo. Como este, deve permanecer pouquíssimo visto, cujo principal objetivo é mais exercitar o olhar, permanecer criando, experimentando novas alternativas, vivendo a partir do processo de criação.
O mote de Diário Livre é o projeto Livro Livre, em que 100 livros com páginas em branco são espalhados em diversos lugares de Fortaleza. Cada pessoa que cruze com o livro pode escrever uma página e deixar o livro em outro lugar, e assim sucessivamente, até que no centésimo dia, os que se interessarem podem entregar o livro num certo ponto de encontro, onde todos poderiam trocar as experiências daquele “livro vivo”. A partir desse mote, Ivo faz um diário aberto, em que acompanha os seus 100 dias desse processo, como se o próprio filme fosse um livro livre, mas com a diferença que é ele próprio quem preenche as suas “cem páginas”.
A idéia de diário está claramente associada ao cinema de Jonas Mekas, ainda mais clara com os “intertítulos” digitados numa máquina de escrever. Mas não há o “cinema epidérmico” típico do superoito e sim um olhar mais contemplativo, típico do realizador cearense, mesclado ainda com fotos pixeladas em PB que dão ao filme um certo clima de nostalgia e de memória.
Do cinema de Mekas (especificamente de Walden) também vem uma idéia de compor uma espécie de crônica indireta de uma comunidade de artistas. Esse contexto surge de forma indireta, já que naturalmente ao longo dos seus cem dias, Ivo cruza com sua rotina de trabalho, seja vivendo o dia-a-dia das atividades do Alumbramento (espécie de pólo de produção do “novo cinema cearense”) seja exercendo a função de diretor de fotografia em trabalhos diversos, seja pesquisando ou realizando seus próprios filmes, seja participando de festivais onde suas obras são exibidas. Vemos então o dia-a-dia da vida em Fortaleza, a viagem para o filme em Recife, o trabalho no novo curta de Petrus Cariry em Fortaleza, sua ida para a Mostra de Tiradentes, sua pesquisa para o documentário sobre a Praia de Iracema.
Ao mesmo tempo em que trabalha, Ivo vive. Primeiro, através de um retrato íntimo de Sabiaguaba, de sua esposa Thaís e de seu filho Ian. O olhar afetuoso para o bebê Ian lembra tanto o cinema de Mekas quanto o anterior Eu agora só vejo as luzes do mundo. É um olhar generoso para Sabiaguaba, bairro interiorano de Fortaleza onde Ivo se refugia. Essa idéia de estar em casa, “descançando” (sic) como ele próprio diz ao longo do filme, entra em contraste quando ele está fora, seja pela solidão dos planos de estrada seja pela saudade de casa anunciada.
Lá pelo terço final do filme, há uma quebra, quando Ivo prepara sua pesquisa para um documentário sobre a Praia de Iracema (P.I.). É quando um tom de entrevistas didáticas e a palavra dominam o filme, quebrando sua abordagem altamente sensorial. Dias depois, surge uma cartela bastante surpreendente, dizendo que o diretor resolveu “jogar tudo fora”. Nesse momento percebemos que o mais importante de Diário Livre é exatamente o seu processo de busca, e não o que se irá encontrar. Deixar o que “se jogou fora” é exatamente parte do processo de busca de Ivo, de voltar atrás, de repensar, pois errar é parte de viver, é parte do processo de criação. Nisso Diário Livre se aproxima, de forma muito indireta, de Santiago.
Daí a coerência de seu final, quando Ivo chega ao centésimo dia e retorna ao projeto Livro Livre. Não sabemos como foi a recepção das pessoas no “ponto de encontro”: essa imagem nos é negada, o filme acaba antes. Não importa onde se vai chegar, e sim o caminho para se chagar até lá, independentemente onde seja.
Embora irregular, Diário Livre é um exercício aberto que fascina pela delicadeza de Ivo em compor um retrato do artista em seu cotidiano em que a criação e a vida se interpolam e se multiplicam. Um olhar generoso, especialmente em relação aos amigos, mas também que marca por um certo sentimento típico de solidão e melancolia, que é afinal a principal característica da obra do Ivo.
Comentários