Santiago
Santiago
De João Salles
É Tudo verdade, Odeon sex 23 21:30
*** ½
O que é um filme? Qual é a função, qual o papel de um filme, ainda mais quando se pensa num documentário? Ora, é falar sobre o outro, mas também evidentemente falar de si, falar sobre si. Em Santiago, a grande idéia de João Salles é que um filme pode ser um pedido de desculpas. Um pedido de desculpas sincero e honesto, dadas as impossibilidades do cinema, que são muito maiores que as suas possibilidades.
Santiago é por outro lado, cinema contemporâneo, filme sobre seu próprio processo de criação, filme dentro do filme, ou melhor, uma reflexão sobre o processo próprio de se fazer um filme, um filme sobre si mesmo. Sobre si mesmo no sentido de ser um filme sobre um filme e também no sentido de ser um filme de um autor falando de si mesmo. Como pessoa e como filme. É um filme que desconstrói o tempo todo a validade de seu discurso, e quanto mais o faz, mais ganha força e vida.
Em 1986 João Salles foi fazer um documentário sobre o mordomo da casa dos seus pais. Vendo o material cerca de 17 anos depois, viu que era péssimo, que não daria um filme. Exatamente por isso fez esse filme, chamado Santiago. Um filme sobre o porquê desse filme não ter dado certo, um filme sobre o porquê de o cinema documental ser uma grande mentira, um filme sobre o porquê desse documentarista ser um grande hipócrita mas ao mesmo tempo um filme que ao desconstruir tudo isso, promove uma resposta positiva: é também um filme sobre Santiago, esse mordomo, a partir do que não foi dito, mesmo que ele não tenha tido direito a ter voz.
Quem tem voz no filme o tempo todo é o diretor, João Salles. O filme é sobre ele, mais que sobre Santiago. É uma espécie de autobiografia. Mas seu interesse para o público reside exatamente nisso, nessa coragem de se olhar de frente e assumir os próprios erros (conforme a linda expressão da Consuelo Lins) e por afirmar que num documentário existe tanto de mentira quanto de verdade.
O que é lindo em Santiago é que esse pedido de desculpas é extremamente carinhoso e revestido de enorme singeleza, elegância e quão delicado o diretor arquiteta sua construção. Inclusive com um certo humor. Esse tom quase miraculoso que percorre o filme, amarrado por uma voz off em que cada palavra parece a mais exata. É um dos filmes mais cuidadosos e delicados dos últimos tempos do cinema brasileiro. Um filme ousado, criativo, que mostra o lado perverso e desumano do cinema. Esse personagem não tem voz, porque o diretor não o queria ouvir. Queria imprimir todas as opiniões que já tinha na cabeça antes de fazer o filme, e não teve a inclinação de deixar-se surpreender, de ver o que esse homem teria a dizer. Era como se ele já soubesse de tudo e teria que dirigir seu personagem para ele lhe falar exatamente aquilo que já sabia sobre ele.
A consciência desse fracasso próprio é revelada no filme a partir de um tom austero, reforçado pela fotografia em preto-e-branco e pelo ritmo lento, contemplativo. Um certo humor, e uma inesperada poesia brotam do filme, que muitas vezes é comovente.
No final, João Salles diz que a relação entre ele e Santiago não era a do documentarista diante de seu personagem, mas continuava a ser a do patrão e do mordomo da casa. Com esse olhar arguto, Santiago revela-se um filme político. Ficamos matutando: até que ponto não se revela um filme sobre a hipocrisia do cinema brasileiro em falar do outro e das questões sociais? Até que ponto a relação de João Salles com Santiago não é um espelho da relação de um cinema brasileiro com seu país, ou a nossa própria relação diante do nosso país? Coisas que mostram que de “egotrip” e “alienação” o filme não tem nem um pouco. Ao contrário, ele se insere numa questão instigante dos limites do documentário brasileiro como símbolo de verdade ou de representação fidedigna de uma realidade, da qual o cineasta não pertence e nem pretende pertencer quando se encerra o filme.
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