Reis e Rainha

Reis e Rainha
De Arnauld Desplechin
Odeon, domingo na repescagem do Fest Rio
*** ½

Só para não passar em branco: Reis e Rainha, do Desplechin, é um grande filme. Um tipo de filme tão grande, tão irregular e tão confuso que não cabe na tela, pois a vida não cabe na tela. O filme abraça com um carinho imenso os seus personagens e o diretor embarca com eles num mar sem fim, quase num barco sem rumo. Abraça com carinho mas sem deixar de dar tapinhas quando preciso. O filme é daquele tipo que te passa tanta informação (informação sobre a cinematografia, claro, não “informação” de dados) que ficamos absolutamente confusos durante a projeção, mas a sensação é de profundo encanto com esse desejo insano de Desplechin de mergulhar neste universo do cinema.

Os personagens, a mise-em-scene, a direção nos esconde muita coisa, e esse é o encanto do filme. Há cenas tbem muito dolorosas. A filha toma conta do pai doente, nas últimas. Quando morre, o pai escreve uma espécie de carta para a filha. Uma carta muito dolorosa. Uma carta sobre a morte, mas tbem sobre a vida. Uma carta sobre a paternidade, sobre o ciúme, que o torna o “avesso que confirma a regra” de um filme de Ozu. Essa carta é uma das coisas mais impactantes filmadas no cinema nos últimos tempos. E Desplechin resolve a cena da leitura da carta de uma forma quase sobrenatural, intuitiva mas que acentua o tom fantasmagórico do acontecimento.

No final, essa filha se casa com um cara que ela não ama mas que lhe dá segurança. Cena do casamento. No meio, ela vai pro porão e queima a carta. Ela faz uma opção. Ela quer negar o que diz a carta. E faz de uma forma muito consciente do que isso significa. A cena da carta queimando não é simbólica: é apenas um pedaço de papel queimando. Como o cinema deve ser.

Essa filha tbem é uma mãe, ela tem um filho. E esse filho é um pouco distante dela, era mais próximo do avô, e parece mais próximo do personagem de um “antigo padrasto”. Esse padrasto acaba sendo internado como um louco, como se fosse uma espécie de Joseph K, ele tentando provar sua sanidade ao invés de sua inocência. E ele conhece uma menina fantástica, que tenta várias vezes cortar os pulsos só pra chamar a atenção. Os diálogos dos dois, o contato entre os dois, são sensacionais, porque têm vida. Os dois se sentam nos degraus da escada com uma verdade que eu não via mais no cinema. O filme dialoga com uma espécie de cinema americano de gênero mas de forma muito esquisita, é muito difícil definir o que seja esse filme.

É um filme sobre a loucura, um filme sobre a carência, um filme sobre a impossibilidade de ficarmos completamente sozinhos, mas é um filme tbem (como eu sou oriental eu acho que todos os filmes são sobre isso) sobre a família, sobre o que significa um lar e sobre o que significa construir uma família, e claro sobre o que representa a liberdade no mundo de hoje, a loucura do músico ou depender do marido que não se ama, como a mulher.

Mas o que me encantou é a doçura com que Desplechin filmou essa história incoerente, com uma sensação do que realmente é o cinema, sem se importar em ser coerente ou importante. É um trabalho encantador, porque ao contrário da pretensão tipicamente francesa, é um trabalho encantado com a possibilidade de viver a vida e viver o cinema. A câmera é muito livre, o corte, a narrativa se articula com idas e vindas de uma forma muito orgânica e muito independente. Um filme de desacertos felizes, que nos dá uma profunda comoção, em que vivemos com esses personagens mas não da forma canhestra e manipuladora do cinema clássico mas de uma forma respeitosa com um sntimento de dúvida, que paira por todo o filme. Grande filme do ainda pouco conhecido Desplechin.

ps: este texto é quase tão confuso quanto o filme. só faltou o seu brilhantismo.

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