O MUNDO
O Mundo
De Jia Zheng-Ke
(revisão) Odeon sab 8 19:30
*** ½
(ou sobre o desafio de escrever algumas palavras sobre O Mundo)
Assistir a um filme como O Mundo nos dá ao mesmo tempo uma sensação de impotência e liberdade. Porque para ZhangKe, como para o que há de melhor no cinema oriental, as relações entre as partes (ou as cenas/seqüências) e o todo acontecem de uma forma muito menos esquemática e dissimulada que no típico cinema americano, ou mesmo no cinema ocidental. Talvez isso aconteça pelo próprio conceito dos ideogramas (versus o nosso alfabeto ocidental), em que os traços e as formas permitem associações de imagens e sons ricos, ambíguos e complexos. Mas também evidentemente não é só por isso, mas reflexo de uma cultura milenar (como bem falou um vietnamita em Corações e Mentes, de Peter Davis, como civilização, os Estados Unidos estão apenas engatinhando). Por isso, se O Mundo não deixa de ser um filme narrativo, em que o espectador convive com as personagens, torce por eles e acompanha suas histórias, ao final do filme nos sobra (no espectador ocidental) uma sensação de impotência, porque o longo filme (137´) é cheio de meias-ações e meios-acontecimentos. Ou seja, não é o tipo de filme em que “nada acontece” mas apenas que “as coisas que acontecem não acontecem da forma como acostumamos a ver no cinema”. Dessa forma, surge uma estranheza mas com um tempo não muito longo de maturação (isto é, no ônibus de volta para casa quando acaba o filme) vemos que o olhar de ZhangKe não se oferece de imediato, porque seu cinema é um cinema de livre associação, mas ao mesmo tempo é indiscutível o painel levemente melancólico sobre o mundo contemporâneo, o gosto por uma nova forma de narrativa e seu desejo que esse novo olhar se traduza numa forma mais livre de o cinema poder acompanhar a “experiência de viver” de seus personagens.
* * *
Os personagens de O Mundo estão inseridos numa espécie de tubo de ensaio, microcosmo em que ficam sobre nossa atenta observação. Eles desfilam numa espécie de tableaux, mas um completamente atípico e estranho, porque um tableaux a céu aberto, um tableaux tridimensional. Vivem num mundo dentro de um mundo. Ou ainda, mais claramente, vivem, dentro de uma Pequim contemporânea, num cenário globalizado: numa espécie de parque temático em que todas as maravilhas do mundo se encontram ali, entre um quarteirão e outro. O simulacro do parque temático de O Mundo é uma metáfora do próprio cinema. De um lado, pelo caráter de dissimulação do real, mas por outro até pelo tom “industrial” e de comércio que se estabelece ali. O tom de repetição e de inércia que domina seu filme anterior, Prazeres Desconhecidos, é repetido, ainda que desta vez, ZhangKe filme em cinemascope. Se desta vez eles conseguem se libertar dos limites da borda do próprio plano (como nem isso conseguiam em Prazeres Desconhecidos), agora o próximo plano é apenas mera continuação do plano anterior. É assim que o parque temático nos é apresentado: através de um trilho que leva a personagem principal de uma “estação” a outra. A atração é sempre diferente, mas é como se fosse a mesma. A medida que o mundo todo cabe na palma de uma mão, é como se estivéssemos aprisionados por essa “dissimulação” da realidade. E assim é o próprio cinema de ZhangKe: indo de um ponto a outro do parque, de um “ponto a outro” de seus personagens”, mostrando o parque com uma movimentação de câmera e a suntuosidade do cinemascope, cada vez mais só nos revela o quanto esse movimento é ilusório, “uma grande ilusão”. À procura que algo que sustente suas vidas, os personagens de O Mundo são integrantes de um tableaux, flutuam livremente entre suas ilusões e a fugacidade de suas próprias vidas. As coisas acontecem mas é como se não acontecessem.
Esses personagens são estrangeiros. Desde os estrangeiros (a mulher da Europa oriental que vai trabalhar, o ex-namorado de Tao, que está ali de passagem) até os estrangeiros de si mesmos. A decisão dos personagens de O Mundo é sempre baseado por uma decisão outra, por alguém ou algo além de si mesmos, ou ainda os objetos funcionam para aquém de sua funcionalidade (o celular que denuncia o amante do guarda, a máquina que ao quebrar tira a vida de Irmãzinha). Nessa miríade de pequenas relações que nunca se completam, o Mundo do parque temático de ZhangKe é às vezes como o nosso próprio mundo: vazio de explicações ou de motivações (a única personagem que sonha com algo é a imigrante da Europa Oriental que vira prostituta), ou ainda, um castelo de cartas ao vento, ou um castelo de areia à beira do mar. Com um domínio plástico, uma segurança do ritmo e uma leveza na difícil tarefa de enquadrar esse claustrofóbico mundo em expansão, além de um uso orgânico (ou seja, nunca por retórica ou mero recurso de estilo) do plano-sequência, ZhangKe demonstra suas inegáveis qualidades como realizador. Ainda, faz uma obra difícil, um mergulho de cabeça no “top de linha” do cinema contemporâneo: um filme que trata de toda essa angústia de viver com toda a calma e a sabedoria típica de um oriental. É preciso rever O Mundo (como eu o fiz) para minimamente avaliar a maestria com que ZhangKe apresenta seu amplo leque de soluções e de pequenas invenções formais, sem nunca perder de foco a sobriedade e o equilíbrio típicos de um oriental. Sem querer chocar o espectador com as soluções de sempre (como os Dardenne, Tsai ou Reygadas, aliás três diretores de ponta), a discrição de ZhangKe exige mais e mais do espectador, porque seu cinema nunca se entrega à primeira vista. Quem consegue “colocar-se no exato nível em relação ao filme e aos personagens que o diretor deseja” não tem como não sair recompensado. O Mundo está dentro do melhor que os artistas do cinema do século XXI têm buscado fazer. Assistir a ele nos dá a sensação de contato com o que há de melhor na arte cinematográfica de hoje. Ou seja, algo que ainda não se sabe o que é, mas está em projeto de ser.
De Jia Zheng-Ke
(revisão) Odeon sab 8 19:30
*** ½
(ou sobre o desafio de escrever algumas palavras sobre O Mundo)
Assistir a um filme como O Mundo nos dá ao mesmo tempo uma sensação de impotência e liberdade. Porque para ZhangKe, como para o que há de melhor no cinema oriental, as relações entre as partes (ou as cenas/seqüências) e o todo acontecem de uma forma muito menos esquemática e dissimulada que no típico cinema americano, ou mesmo no cinema ocidental. Talvez isso aconteça pelo próprio conceito dos ideogramas (versus o nosso alfabeto ocidental), em que os traços e as formas permitem associações de imagens e sons ricos, ambíguos e complexos. Mas também evidentemente não é só por isso, mas reflexo de uma cultura milenar (como bem falou um vietnamita em Corações e Mentes, de Peter Davis, como civilização, os Estados Unidos estão apenas engatinhando). Por isso, se O Mundo não deixa de ser um filme narrativo, em que o espectador convive com as personagens, torce por eles e acompanha suas histórias, ao final do filme nos sobra (no espectador ocidental) uma sensação de impotência, porque o longo filme (137´) é cheio de meias-ações e meios-acontecimentos. Ou seja, não é o tipo de filme em que “nada acontece” mas apenas que “as coisas que acontecem não acontecem da forma como acostumamos a ver no cinema”. Dessa forma, surge uma estranheza mas com um tempo não muito longo de maturação (isto é, no ônibus de volta para casa quando acaba o filme) vemos que o olhar de ZhangKe não se oferece de imediato, porque seu cinema é um cinema de livre associação, mas ao mesmo tempo é indiscutível o painel levemente melancólico sobre o mundo contemporâneo, o gosto por uma nova forma de narrativa e seu desejo que esse novo olhar se traduza numa forma mais livre de o cinema poder acompanhar a “experiência de viver” de seus personagens.
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Os personagens de O Mundo estão inseridos numa espécie de tubo de ensaio, microcosmo em que ficam sobre nossa atenta observação. Eles desfilam numa espécie de tableaux, mas um completamente atípico e estranho, porque um tableaux a céu aberto, um tableaux tridimensional. Vivem num mundo dentro de um mundo. Ou ainda, mais claramente, vivem, dentro de uma Pequim contemporânea, num cenário globalizado: numa espécie de parque temático em que todas as maravilhas do mundo se encontram ali, entre um quarteirão e outro. O simulacro do parque temático de O Mundo é uma metáfora do próprio cinema. De um lado, pelo caráter de dissimulação do real, mas por outro até pelo tom “industrial” e de comércio que se estabelece ali. O tom de repetição e de inércia que domina seu filme anterior, Prazeres Desconhecidos, é repetido, ainda que desta vez, ZhangKe filme em cinemascope. Se desta vez eles conseguem se libertar dos limites da borda do próprio plano (como nem isso conseguiam em Prazeres Desconhecidos), agora o próximo plano é apenas mera continuação do plano anterior. É assim que o parque temático nos é apresentado: através de um trilho que leva a personagem principal de uma “estação” a outra. A atração é sempre diferente, mas é como se fosse a mesma. A medida que o mundo todo cabe na palma de uma mão, é como se estivéssemos aprisionados por essa “dissimulação” da realidade. E assim é o próprio cinema de ZhangKe: indo de um ponto a outro do parque, de um “ponto a outro” de seus personagens”, mostrando o parque com uma movimentação de câmera e a suntuosidade do cinemascope, cada vez mais só nos revela o quanto esse movimento é ilusório, “uma grande ilusão”. À procura que algo que sustente suas vidas, os personagens de O Mundo são integrantes de um tableaux, flutuam livremente entre suas ilusões e a fugacidade de suas próprias vidas. As coisas acontecem mas é como se não acontecessem.
Esses personagens são estrangeiros. Desde os estrangeiros (a mulher da Europa oriental que vai trabalhar, o ex-namorado de Tao, que está ali de passagem) até os estrangeiros de si mesmos. A decisão dos personagens de O Mundo é sempre baseado por uma decisão outra, por alguém ou algo além de si mesmos, ou ainda os objetos funcionam para aquém de sua funcionalidade (o celular que denuncia o amante do guarda, a máquina que ao quebrar tira a vida de Irmãzinha). Nessa miríade de pequenas relações que nunca se completam, o Mundo do parque temático de ZhangKe é às vezes como o nosso próprio mundo: vazio de explicações ou de motivações (a única personagem que sonha com algo é a imigrante da Europa Oriental que vira prostituta), ou ainda, um castelo de cartas ao vento, ou um castelo de areia à beira do mar. Com um domínio plástico, uma segurança do ritmo e uma leveza na difícil tarefa de enquadrar esse claustrofóbico mundo em expansão, além de um uso orgânico (ou seja, nunca por retórica ou mero recurso de estilo) do plano-sequência, ZhangKe demonstra suas inegáveis qualidades como realizador. Ainda, faz uma obra difícil, um mergulho de cabeça no “top de linha” do cinema contemporâneo: um filme que trata de toda essa angústia de viver com toda a calma e a sabedoria típica de um oriental. É preciso rever O Mundo (como eu o fiz) para minimamente avaliar a maestria com que ZhangKe apresenta seu amplo leque de soluções e de pequenas invenções formais, sem nunca perder de foco a sobriedade e o equilíbrio típicos de um oriental. Sem querer chocar o espectador com as soluções de sempre (como os Dardenne, Tsai ou Reygadas, aliás três diretores de ponta), a discrição de ZhangKe exige mais e mais do espectador, porque seu cinema nunca se entrega à primeira vista. Quem consegue “colocar-se no exato nível em relação ao filme e aos personagens que o diretor deseja” não tem como não sair recompensado. O Mundo está dentro do melhor que os artistas do cinema do século XXI têm buscado fazer. Assistir a ele nos dá a sensação de contato com o que há de melhor na arte cinematográfica de hoje. Ou seja, algo que ainda não se sabe o que é, mas está em projeto de ser.
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