(FESTRIO) Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonaste?
Meu Deus, Meus Deus, por que me abandonaste?
De Shinji Aoyama
São Luiz qua 19hs / Estação Botafogo seg 3 12:00
***
Escrever sobre o cinema de Shinji Aoyama é em primeiro lugar um privilégio; em segundo, um desafio. Se quando vemos um filme de Tsai Ming-Liang ou de Pedro Almodóvar, conseguimos identificar por alguns poucos planos que se trata de um filme “de fulano” por um traço característico, os filmes de Aoyama fogem dessa convenção tradicional do chamado “cinema de autor”. Daí que a essência de seu cinema é fugidia. Mas ainda assim é possível falar em “um cinema de Aoyama” porque seus filmes possuem diversos traços em comum: um diálogo com um certo cinema de gênero, o interesse constante pelo tema da morte, do suicídio ou da doença como espelhos de uma fissura de viver, como característica da espécie humana.
Mas o que nos desconcerta nos filmes de Aoyama (com exceção do ótimo Eureka, que segue de forma mais fidedigna os tiques de um “cinema de festival”) é como seus filmes fazem parte de um processo de busca radical que se equilibra no fio da navalha, no meio da corda bamba. O cinema de Aoyama é dessa forma um mistério. Cada plano em si esconde um significado oculto, um caminho sem volta, um processo sinistro, enigmático e surpreendente. Ver os filmes de Aoyama é acima de tudo participar COM o diretor, COM os personagens, de um processo de busca, ou melhor, de um processo de DÚVIDA sobre o próprio significado dessa busca. Com isso, Aoyama faz um cinema que foge das respostas e mergulha na dúvida, que foge dos cacoetes do cinema de autor para mergulhar no cinema por si, que foge dos cacoetes em busca de um estilo que não se conhece. Aoyama, ao fazer seus filmes, mergulha no desconhecido, lança-se ao vazio sem saber ao certo aonde chegar. Não parte do que já sabe de antemão para chegar no que já se previa (como os autores que se repetem). Com isso, acaba fazendo um “cinema da névoa” que não tem muitos fãs convictos. Até mesmo os “nerds do Contra” resolveram ignora-lo (Será que a Cahiers não gosta de Aoyama?)
* * *
“Como podemos distinguir um suicídio provocado pela doença de um suicídio natural?”
“A música não paralisa o vírus, ao contrário, ela o estimula”
O início de Meu Deus, Meu Deus esclarece alguns dos pressupostos do filme. Dois homens, vestidos com uma máscara, gravam sons numa barraca armada à beira do mar. Captam, com um microfone, restos de uma existência humana: uma mesa posta no café da manhã, uma garrafa de leite, alguns objetos espalhados. Por trás desses objetos totalmente desconhecidos, existe uma memória, existem rastros de uma vida passada. Há um mistério que aponta para a existência do ser humano. Uma fotografia, um maço de cartas de um baralho, um cavalinho de um carrossel. Elementos de uma infância perdida, de uma vida passada, de “algo que já se foi” mas presentificado através das coisas e dos sons. A partir desses rastros, os dois homens criam um “sentido” a partir de sua expressão artística, a partir desses sons. O filme então descreve com uma intimidade bastante forte a rotina do processo de criação dos músicos. Sem trocar uma única palavra, eles dialogam entre si: a arte flui da “experimentação-teste” e do “olhar para as coisas”.
Mas Aoyama vai pouco a pouco quebrar o suposto romantismo desse isolamento do trabalho do artista. A mesma arte que pode “salvar vidas” pode, no limite, ser a causa primeira de “pôr um fim” (“A música não paralisa o vírus, ao contrário, ela o estimula”). Dessa forma, já pelo título (um dizer bíblico em hebraico), Aoyama faz um filme religioso sobre a dúvida, sobre o fato de a arte não provocar uma resposta decisiva sobre o mistério da vida. Dessa forma, Aoyama faz um filme ambíguo sobre a inevitabilidade do suicídio, ou ainda sobre a dificuldade de se viver diante da efemeridade da felicidade (ou seja, sobre a miserabilidade da condição humana). Viver então se torna uma aposta, que pode passar ou não pela arte. O artista, para Aoyama pode ser um dos motivos possíveis para se manter vivo, mais um “subterfúgio”, mas apenas ele não é o suficiente: é preciso antes de tudo, querer viver.
Aoyama apresenta esse tema por meio de diversos pontos de fuga, que desorientam o espectador mais do que o fazem mergulhar diretamente na pergunta em si. Para Aoyama, o cinema, acima de tudo, é elemento perturbador de um sentido, em que o diretor “cria climas” para que o espectador se perca, e nunca se encontre. O elo entre esses personagens revela-se uma fissura entre uma íntima cumplicidade (os dois músicos, o avô e a neta) e uma extrema ausência (a súbita morte de um dos músicos e do detetive).
Ao final, numa decupagem de grande energia que comprova a liberdade estética do diretor, a música (a arte) surge como sinal de ascese, como elemento visionário. Se não funcionou para o músico suicida, isso não significa que não possa funcionar para a adolescente. Resta ao artista ir dormir, sem saber o que será do futuro, guiado por sua dúvida, em dúvida se será capaz ao menos de manter-se vivo. É como se o final de Meu Deus, Meus Deus pusesse em dúvida o que pode-se esperar de um filme. Sinal de redenção definitiva, mas sem uma resposta desse suposto processo de transformação. Uma estética distante, melancólica, dolorosa, iluminada e confiante. O artista vai dormir. O que se deve esperar de um artista então, a não ser que ele parta para o próximo filme?
De Shinji Aoyama
São Luiz qua 19hs / Estação Botafogo seg 3 12:00
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Escrever sobre o cinema de Shinji Aoyama é em primeiro lugar um privilégio; em segundo, um desafio. Se quando vemos um filme de Tsai Ming-Liang ou de Pedro Almodóvar, conseguimos identificar por alguns poucos planos que se trata de um filme “de fulano” por um traço característico, os filmes de Aoyama fogem dessa convenção tradicional do chamado “cinema de autor”. Daí que a essência de seu cinema é fugidia. Mas ainda assim é possível falar em “um cinema de Aoyama” porque seus filmes possuem diversos traços em comum: um diálogo com um certo cinema de gênero, o interesse constante pelo tema da morte, do suicídio ou da doença como espelhos de uma fissura de viver, como característica da espécie humana.
Mas o que nos desconcerta nos filmes de Aoyama (com exceção do ótimo Eureka, que segue de forma mais fidedigna os tiques de um “cinema de festival”) é como seus filmes fazem parte de um processo de busca radical que se equilibra no fio da navalha, no meio da corda bamba. O cinema de Aoyama é dessa forma um mistério. Cada plano em si esconde um significado oculto, um caminho sem volta, um processo sinistro, enigmático e surpreendente. Ver os filmes de Aoyama é acima de tudo participar COM o diretor, COM os personagens, de um processo de busca, ou melhor, de um processo de DÚVIDA sobre o próprio significado dessa busca. Com isso, Aoyama faz um cinema que foge das respostas e mergulha na dúvida, que foge dos cacoetes do cinema de autor para mergulhar no cinema por si, que foge dos cacoetes em busca de um estilo que não se conhece. Aoyama, ao fazer seus filmes, mergulha no desconhecido, lança-se ao vazio sem saber ao certo aonde chegar. Não parte do que já sabe de antemão para chegar no que já se previa (como os autores que se repetem). Com isso, acaba fazendo um “cinema da névoa” que não tem muitos fãs convictos. Até mesmo os “nerds do Contra” resolveram ignora-lo (Será que a Cahiers não gosta de Aoyama?)
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“Como podemos distinguir um suicídio provocado pela doença de um suicídio natural?”
“A música não paralisa o vírus, ao contrário, ela o estimula”
O início de Meu Deus, Meu Deus esclarece alguns dos pressupostos do filme. Dois homens, vestidos com uma máscara, gravam sons numa barraca armada à beira do mar. Captam, com um microfone, restos de uma existência humana: uma mesa posta no café da manhã, uma garrafa de leite, alguns objetos espalhados. Por trás desses objetos totalmente desconhecidos, existe uma memória, existem rastros de uma vida passada. Há um mistério que aponta para a existência do ser humano. Uma fotografia, um maço de cartas de um baralho, um cavalinho de um carrossel. Elementos de uma infância perdida, de uma vida passada, de “algo que já se foi” mas presentificado através das coisas e dos sons. A partir desses rastros, os dois homens criam um “sentido” a partir de sua expressão artística, a partir desses sons. O filme então descreve com uma intimidade bastante forte a rotina do processo de criação dos músicos. Sem trocar uma única palavra, eles dialogam entre si: a arte flui da “experimentação-teste” e do “olhar para as coisas”.
Mas Aoyama vai pouco a pouco quebrar o suposto romantismo desse isolamento do trabalho do artista. A mesma arte que pode “salvar vidas” pode, no limite, ser a causa primeira de “pôr um fim” (“A música não paralisa o vírus, ao contrário, ela o estimula”). Dessa forma, já pelo título (um dizer bíblico em hebraico), Aoyama faz um filme religioso sobre a dúvida, sobre o fato de a arte não provocar uma resposta decisiva sobre o mistério da vida. Dessa forma, Aoyama faz um filme ambíguo sobre a inevitabilidade do suicídio, ou ainda sobre a dificuldade de se viver diante da efemeridade da felicidade (ou seja, sobre a miserabilidade da condição humana). Viver então se torna uma aposta, que pode passar ou não pela arte. O artista, para Aoyama pode ser um dos motivos possíveis para se manter vivo, mais um “subterfúgio”, mas apenas ele não é o suficiente: é preciso antes de tudo, querer viver.
Aoyama apresenta esse tema por meio de diversos pontos de fuga, que desorientam o espectador mais do que o fazem mergulhar diretamente na pergunta em si. Para Aoyama, o cinema, acima de tudo, é elemento perturbador de um sentido, em que o diretor “cria climas” para que o espectador se perca, e nunca se encontre. O elo entre esses personagens revela-se uma fissura entre uma íntima cumplicidade (os dois músicos, o avô e a neta) e uma extrema ausência (a súbita morte de um dos músicos e do detetive).
Ao final, numa decupagem de grande energia que comprova a liberdade estética do diretor, a música (a arte) surge como sinal de ascese, como elemento visionário. Se não funcionou para o músico suicida, isso não significa que não possa funcionar para a adolescente. Resta ao artista ir dormir, sem saber o que será do futuro, guiado por sua dúvida, em dúvida se será capaz ao menos de manter-se vivo. É como se o final de Meu Deus, Meus Deus pusesse em dúvida o que pode-se esperar de um filme. Sinal de redenção definitiva, mas sem uma resposta desse suposto processo de transformação. Uma estética distante, melancólica, dolorosa, iluminada e confiante. O artista vai dormir. O que se deve esperar de um artista então, a não ser que ele parta para o próximo filme?
Comentários
p.s.: depois dessas letras da verificação de palavras acho que fica mais facil acertar seu sobrenome ...