EM CASA
EM CASA
Texto de Luiz Rosemberg Filho *
Para atravessar a vida sem medo só é preciso ter coragem. Quem não tiver, não entre".
Na casa a história de um enraizamento profundo. Ali, uma paixão distante. Entre a terra e o olhar uma profusão de espaços percorridos no espaço. O tempo volta a ser vivido com os recursos da poesia e do cinema. O reencontro com a velha casa é devastado pelo silêncio. E, através do silêncio, a complexidade das imagens de Marcelo Ikeda. Um pouco como o vento que passa por onde quer. No caso, querer entender a linguagem dos espaços e dos objetos na medida do possível. Então recomeçar uma vez mais como num processo de análise onde estamos sempre recomeçando. A princípio a tranqüilidade do olhar e o silêncio da paisagem. Entre uma coisa e outra o vazio onde se foi feliz e infeliz. Triste muitas vezes, e alegre. Afinal, o que somos se temos que ser alguma coisa para preencher o vazio do nosso tempo? O vazio da casa. O vazio da paisagem. O vazio do vazio...
Edificou-se um deserto dentro das casas. E como bem diz Camus no seu genial Noces suivi de L'Été: "Que fazer, se minha memória existe apenas para uma só imagem?" E ainda uma vez mais como num filme de Resnais, a casa cercada pela cidade deserta. Em casa é uma rica experiência de ternos rompimentos analíticos como princípio do tempo passado. Fala-se pela imobilidade e pelo silêncio. Aqui importa o ser como aventura de si mesmo. O (des)conhecimento torna-se complexo. Ontem o menino da foto, hoje o cineasta refletido no espelho. O tempo transforma-se na substância de uma nova idéia de imagens: a não-linearidade da visão assemelhando o olhar ao sonho. Marcelo Ikeda faz dos espaços e objetos a anti-epopéia dos anos de aprendizagem.
No caso, reexpor o passado torna-se um gesto profundo e delicado onde o sensível passar a ser expor a linguagem do silêncio. Silêncio morto do que passou dialogando com o vazio do presente. As tantas e tantas associações abrem-se para infinitas interpretações possíveis. E uma delas é a do menino do passado, diante do espelho do presente. Imagem que vem da casa no computador para o reflexo de uma filmagem, hoje. Coincidência ou não, o menino e o cineasta tornam-se imagem para não morrerem na tristeza do mundo real que fabrica o mundo banal de palavras que nada dizem. Ou seja, ao silenciar a fala como expressão técnica (possível) da memória, faz da imagem o centro visual de um resgate do cinema. As associações livres tornam-se necessárias na ordem oculta das idéias não-reveladas.
E na essência do passado, o presente em lenta formação. O menino na foto de ontem é a extensão da dúvida e da memória em estado bruto. E através da casa da família o repouso do olhar na aceitação da tragédia moderna pela via do silêncio absoluto. Nas imagens com pouco ou nenhum movimento assegura-se uma anti-emoção ao olhar. Olhar o espaço que o faz meditar sobre o esquecimento e o tempo. Daí em diante Em casa passa a ser uma rica demonstração de múltiplas aparências muitíssimo pessoais. Aqui importa o olhar que se rompe do medo. Que, evidentemente, não pode ser um olhar espetacular como em tudo na TV. É um olhar possível, depois de uma certa distância. Em casa é uma volta angustiante no tempo. Das paisagens quase mortas ao seu espaço familiar, múltiplos movimentos de sonhos e impossibilidades. E se a experiência do olhar não serve ao crescimento, observar operários trabalhando hoje (a seqüência se repete algumas vezes), ajuda a Ikeda a digerir a sua tristeza frente ao espaço passado e ao mesmo tempo presente.
Afinal somos todos cúmplices de um estado de barbárie estranho e banalizado, onde o homem é só um animal que trabalha no que não gosta, e assim não vive, não ama, não goza. E morre. Possivelmente as mesmas normas servem para todos, pois o inverso de uma revolução existencial é a ignorância do poder que a todos condena a uma aceitação do vazio e da mentira. A arte do jovem realizador em Em casa está em se expor no olhar da câmera tentando compor um vertiginoso mural do seu próprio movimento numa vida diferente, apesar da barbárie instituída com a Segunda Guerra Mundial, onde se fez experiências macabras e criminosas em Hiroxima e Nagazaki, para nos limitarmos às origens do jovem realizador.
O seu terno olhar sobre a paisagem e sobre os objetos é tão estranho que me fez pensar no olhar possível depois da bomba Enola Gay: as primeiras paisagens, os espaços desertos, os objetos amontoados. Então: ontem se jogavam cartas. Caminhava-se por ruas ensolaradas e desertas. O vento balançava as folhas e a cortina florida do quarto. As grades, as janelas, os sapatos, as roupas... A contemplação torna-se dolorosa quando banhada por um silêncio assustador. Ou seja, o ato de filmar é uma espécie do avesso da certeza. Buscam-se múltiplas ligações com o tempo da memória. Da bela mãe-real ao menino e à casa volta-se a um passado sem vencedores, ou vencidos. E sim à vida em seu estado bruto.
Marcelo Ikeda digere os tantos e tantos momentos de monotonia ao observar filmando o reconhecimento de cada objeto, de cada espaço, de cada momento. Faz com as imagens a sua razão de ser um cineasta diferente de seus companheiros de geração. E o que me passa é que uma de suas ambições está em reencontrar uma ponte possível entre o Ocidente de Win Wenders e o Oriente de Ozu. Sutil, avança por angústias e grandezas da sua própria formação. E com um vigor quase incômodo lapida sensivelmente o seu atual entendimento e olhar sobre o tempo da dor e da beleza.
Depois, a partida. Os carros em movimento. As pessoas. A cidade das ruínas. Do trabalho e da formação. Uma vez mais uma nova casa. Diferente da outra, mas uma vez mais o silêncio, a tristeza, os objetos desarrumados. De uma imagem da velha casa aprisionada no computador ao jovem Ikeda se filmando, refletido num espelho uma odisséia no não-tempo. Ontem filmava o passado. Hoje filma a invenção a partir do seu lado sensível. O marinheiro que não foi ao mar, passou pela economia para, por fim, atracar num cinema de linguagem. Na sua linguagem poética onde o silêncio é o suficiente. Para quê mais?
* Luiz Rosemberg Filho, carioca, é o diretor de Assuntina das Amérikas e Crônica de um Industrial, entre outros filmes.
Texto de Luiz Rosemberg Filho *
Para atravessar a vida sem medo só é preciso ter coragem. Quem não tiver, não entre".
(Clarice Lispector)
Na casa a história de um enraizamento profundo. Ali, uma paixão distante. Entre a terra e o olhar uma profusão de espaços percorridos no espaço. O tempo volta a ser vivido com os recursos da poesia e do cinema. O reencontro com a velha casa é devastado pelo silêncio. E, através do silêncio, a complexidade das imagens de Marcelo Ikeda. Um pouco como o vento que passa por onde quer. No caso, querer entender a linguagem dos espaços e dos objetos na medida do possível. Então recomeçar uma vez mais como num processo de análise onde estamos sempre recomeçando. A princípio a tranqüilidade do olhar e o silêncio da paisagem. Entre uma coisa e outra o vazio onde se foi feliz e infeliz. Triste muitas vezes, e alegre. Afinal, o que somos se temos que ser alguma coisa para preencher o vazio do nosso tempo? O vazio da casa. O vazio da paisagem. O vazio do vazio...
Edificou-se um deserto dentro das casas. E como bem diz Camus no seu genial Noces suivi de L'Été: "Que fazer, se minha memória existe apenas para uma só imagem?" E ainda uma vez mais como num filme de Resnais, a casa cercada pela cidade deserta. Em casa é uma rica experiência de ternos rompimentos analíticos como princípio do tempo passado. Fala-se pela imobilidade e pelo silêncio. Aqui importa o ser como aventura de si mesmo. O (des)conhecimento torna-se complexo. Ontem o menino da foto, hoje o cineasta refletido no espelho. O tempo transforma-se na substância de uma nova idéia de imagens: a não-linearidade da visão assemelhando o olhar ao sonho. Marcelo Ikeda faz dos espaços e objetos a anti-epopéia dos anos de aprendizagem.
No caso, reexpor o passado torna-se um gesto profundo e delicado onde o sensível passar a ser expor a linguagem do silêncio. Silêncio morto do que passou dialogando com o vazio do presente. As tantas e tantas associações abrem-se para infinitas interpretações possíveis. E uma delas é a do menino do passado, diante do espelho do presente. Imagem que vem da casa no computador para o reflexo de uma filmagem, hoje. Coincidência ou não, o menino e o cineasta tornam-se imagem para não morrerem na tristeza do mundo real que fabrica o mundo banal de palavras que nada dizem. Ou seja, ao silenciar a fala como expressão técnica (possível) da memória, faz da imagem o centro visual de um resgate do cinema. As associações livres tornam-se necessárias na ordem oculta das idéias não-reveladas.
E na essência do passado, o presente em lenta formação. O menino na foto de ontem é a extensão da dúvida e da memória em estado bruto. E através da casa da família o repouso do olhar na aceitação da tragédia moderna pela via do silêncio absoluto. Nas imagens com pouco ou nenhum movimento assegura-se uma anti-emoção ao olhar. Olhar o espaço que o faz meditar sobre o esquecimento e o tempo. Daí em diante Em casa passa a ser uma rica demonstração de múltiplas aparências muitíssimo pessoais. Aqui importa o olhar que se rompe do medo. Que, evidentemente, não pode ser um olhar espetacular como em tudo na TV. É um olhar possível, depois de uma certa distância. Em casa é uma volta angustiante no tempo. Das paisagens quase mortas ao seu espaço familiar, múltiplos movimentos de sonhos e impossibilidades. E se a experiência do olhar não serve ao crescimento, observar operários trabalhando hoje (a seqüência se repete algumas vezes), ajuda a Ikeda a digerir a sua tristeza frente ao espaço passado e ao mesmo tempo presente.
Afinal somos todos cúmplices de um estado de barbárie estranho e banalizado, onde o homem é só um animal que trabalha no que não gosta, e assim não vive, não ama, não goza. E morre. Possivelmente as mesmas normas servem para todos, pois o inverso de uma revolução existencial é a ignorância do poder que a todos condena a uma aceitação do vazio e da mentira. A arte do jovem realizador em Em casa está em se expor no olhar da câmera tentando compor um vertiginoso mural do seu próprio movimento numa vida diferente, apesar da barbárie instituída com a Segunda Guerra Mundial, onde se fez experiências macabras e criminosas em Hiroxima e Nagazaki, para nos limitarmos às origens do jovem realizador.
O seu terno olhar sobre a paisagem e sobre os objetos é tão estranho que me fez pensar no olhar possível depois da bomba Enola Gay: as primeiras paisagens, os espaços desertos, os objetos amontoados. Então: ontem se jogavam cartas. Caminhava-se por ruas ensolaradas e desertas. O vento balançava as folhas e a cortina florida do quarto. As grades, as janelas, os sapatos, as roupas... A contemplação torna-se dolorosa quando banhada por um silêncio assustador. Ou seja, o ato de filmar é uma espécie do avesso da certeza. Buscam-se múltiplas ligações com o tempo da memória. Da bela mãe-real ao menino e à casa volta-se a um passado sem vencedores, ou vencidos. E sim à vida em seu estado bruto.
Marcelo Ikeda digere os tantos e tantos momentos de monotonia ao observar filmando o reconhecimento de cada objeto, de cada espaço, de cada momento. Faz com as imagens a sua razão de ser um cineasta diferente de seus companheiros de geração. E o que me passa é que uma de suas ambições está em reencontrar uma ponte possível entre o Ocidente de Win Wenders e o Oriente de Ozu. Sutil, avança por angústias e grandezas da sua própria formação. E com um vigor quase incômodo lapida sensivelmente o seu atual entendimento e olhar sobre o tempo da dor e da beleza.
Depois, a partida. Os carros em movimento. As pessoas. A cidade das ruínas. Do trabalho e da formação. Uma vez mais uma nova casa. Diferente da outra, mas uma vez mais o silêncio, a tristeza, os objetos desarrumados. De uma imagem da velha casa aprisionada no computador ao jovem Ikeda se filmando, refletido num espelho uma odisséia no não-tempo. Ontem filmava o passado. Hoje filma a invenção a partir do seu lado sensível. O marinheiro que não foi ao mar, passou pela economia para, por fim, atracar num cinema de linguagem. Na sua linguagem poética onde o silêncio é o suficiente. Para quê mais?
* Luiz Rosemberg Filho, carioca, é o diretor de Assuntina das Amérikas e Crônica de um Industrial, entre outros filmes.
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