Rosemberg sobre Auto-Retrato

Texto do Rosemberg sobre o meu "auto-retrato" ...

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“Somos pobres de histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.”
Walter Benjamin

Proximidade e Distâncias

Como é filmar o silêncio de um observador mudo? Um cineasta filma tudo que vê, ou só representa aquilo que já domina? O que é ser um artista da subjetividade? Sensibilidade ajuda ou atrapalha, num país como o nosso? Como explicar pensamentos conflituosos com a imobilidade provocada pelo vazio? Ora, se o país é levado com um escândalo a cada dia, porque a nossa própria casa não seria reflexo da dessarrumação geral? Me refiro aí às pessoas que ainda lidam com o processo criativo. E que são poucas. Como bem dizia a “A$untina das Amérikas”: “Todo mundo faz cinema, mas poucos fazem filmes”. E se falta imaginação e poesia ao poder, porque teríamos que estará associados à modernidade de um pensamento de vanguarda? Ora, como substituir o amadorismo, a arrogância e os radicalismos por devaneios e momentos de sinceridade, pensados?

A socialização do narcisismo está tão enraizada no poder como no indivíduo a desempenhar uma tarefa idiota como o seu compromisso com o trabalho. Sempre insincero só lhes resta o poder. E lá chegando tornam-se deslumbrados, idiotas, arrogantes, mistificadores, pulhas, sabujos... e por aí vai. Para o verdadeiro criador este percurso não lhe diz nada. O seu grande compromisso é estabelecido entre viver o prazer (sempre difícil e complicado) e a conscientização e elaboração de um pensamento mais profundo. E se o olhar do Outro insiste em ver a velhice da intolerância como a única riqueza ameaçada, defender o que seja podre torna-se um reasseguramento junto ao poder, e não a vida-vivida. Ou seja, a vida-representada apazigua o poder. Já a vida-vivida torna-se um confronto com este triste e deprimente aprendizado da boçalidade do poder.

Em essência o cinema pode ser tudo. Até mesmo uma tela escura com um texto político no som. Se se permitisse deixar a imaginação voar, sua singularidade iria muito além de tido o qualquer discurso crítico já feito. O trabalho expressivo (ainda que difícil) de Marcelo Ikeda atesta uma profunda paixão anti-acadêmica que dá relevância à responsabilidade de um saber mais profundo. E é claro que é preciso disciplina nas múltiplas bandeiras da experimentação. As expressões Cinema Livre ou Experimental estão muito além de uma simples recusa do mercado ocupado por Hollywood, e seus imitadores. Na verdade serviçais administradores pós-graduados na manutenção do status quo.

Ora, se o espetáculo boçal serve ao sistema de Sarney, Collor, FHC, Lula... a experimentação pensada serviu e serve à Vertov, Welles, Pasolini, Visconti, Kubrick, Antonioni, Bergman, Godard... isso sem falarmos na importância ilimitada do nosso Glauber Rocha. “Auto-Retrato do Artista Durante a Gestação” segue o percurso da procura do seu trabalho anterior com o nome de “Cinediário”. E entre a glorificação do espetáculo (em geral televisivo e boçal) ou um culto à impotência, o cinema de Marcelo Ikeda legitima a alternativa do pensamento profundo como queria Walter Benjamin. E evidentemente que não se pode julgar este seu último trabalho pelo viés do pessimismo, da auto-suficiência pessoal, do egocentrismo surtado ou de impulsos narcisistas, primários. Ikeda se oferece ao espectador como autor-ator e personagem, sem pretensão alguma de ser uma referência do fracasso, do reconhecimento ou do poder.

Ele ali está removendo o lixo da sua casa e do próprio ser. O final exemplar nos surpreende pela sua confiança em se expor nu, depois do banho. Ou seja, não é um filme para bonequinhos ou estrelinhas. E sim um trabalho (até bem humorado) questionando as intenções de algum resultado muito além da profissão de cineasta em gestação. A sua exposição como personagem de si mesmo, desfecha na rigidez do capital, o gosto estético do prazer. O seu terno modo de filmar passa por múltiplas metamorfoses provocando um mal-estar dividido entre a inocência perdida e a dor entranhada no olhar sofrido. Olhar a casa desarrumada. Olhar alguns alimentos envelhecidos na geladeira. Olhar o próprio rosto no espelho, depois do banho. Rosto que não acrescenta ao corpo ausência de densidades. O seu “auto-retrato” não deixa de ser uma viagem ao imobilismo da sua própria vida desarrumada.

Adepto de um cinema de linguagem, Ikeda dá a sua insatisfação uma espécie de embriaguez sofrida da alma. A perda do lado belo interno da casa é acompanhada em alguns momentos por excessos musicais bregas. E a gestação da arte torna-se substância viva da desordem. Passa uma sensação de caos onde a pureza é regida pelo demônio em estado de putrefação. E no lugar dos cadáveres: os restos, o podre, o cheirar-mal, o sujo...Mas não seria também o podre, o cheirar mal e o sujo do país que se recusa a mudar? É da desordem que se gesta a obra de arte, ainda que crepuscular. Ikeda é um straubiano, sem excessos de situações. E nesse seu pequeno trabalho doméstico, ele persegue a sua tolerância com o seu próprio horror sem suavizar nada. E muito menos a possível irritação do espectador, que o seu processo intimíssimo deixa fluir. Seus múltiplos exercícios cinematográficos acentuam essa traumática viagem à luz da insatisfação humana com o tempo real, retrabalhado pelo olhar. É um cinema que não se deixa sodomizar pelas razões do mercado.

Pouco interessado em camuflar a ignorância do seu tempo, faz do horror do mundo o sujeito de sua tragédia: a casa desarrumada como metáfora da sua ânsia de mudar, sempre que possível. Romper com o sujo externo para poder criar. A gestação do processo criativo. O essencial é aproximar e traduzir o lixo externo numa espécie de tempo passando/passado. Tal conclusão leva-o ao banho real. O personagem ultrapassa o ator, colocando-o diante de si mesmo diante do espelho do banheiro. Se vê então Marcelo Ikeda sentado no seu banheiro em três olhares: o real, o do ator e do personagem. O que se busca é uma real substituição do tempo comum dos objetos pela densidade do ser-artista para a vida. E não é o que importa?

Luiz Rosemberg Filho

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