Extremo Sul

Extremo Sul
De Monica Schmiedt e Sylvester Campe
É Tudo Verdade, CCBB sex 1 21hs
**½

Fui com muito pouco entusiasmo para assistir a Extremo Sul, e já o fui encarando como um “filme sobre alpinismo”, uma mega reportagem no estilo SporTV, um “filme de fotografia” que pouco teria a dizer. Mas em primeiro lugar, já fiquei surpreendido pela competência técnica do filme. A primeira parte do filme, que apresenta o histórico dos quatro alpinistas, tem uma linguagem dinâmica, evitando o didatismo e tornando o ritmo dessa apresentação bem ágil. Ainda mais se tratando de um documentário, em que na maior parte das vezes não pode existir o “retake” é exemplar a eficiência da fotografia, do som, da câmera, ainda mais com as filmagens em película. A alternância entre o digital e a película também são muito bem feitas: o digital para as entrevistas, mais longas e em que a imagem não tem um papel primordial; a película para os planos gerais, para as imagens da paisagem local.

Mas se o filme já tinha o seu interesse pela competência da parte técnica e pelo dinamismo da montagem, nada poderia nos levar a pensar que o filme teria uma grande virada exatamente na metade do filme, revelando-se um grande ensaio metalingüístico sobre a realização de um documentário e sobre os limites do sonho e da existência humana.

É que se na parte inicial acompanhamos, nos moldes do cinema clássico narrativo, toda a hercúlea preparação da equipe de quatro alpinistas, extremamente capazes e aptos para o desafio de alcançar o cume do monte, na segunda metade, acompanhamos a derrocada desse processo. Aos poucos, começam a surgir intrigas dentro da equipe. Mas o mais interessante é que essas intrigas estão intimamente relacionadas com a própria presença da equipe de filmagem, que, mesmo involuntariamente, acaba interferindo de maneira decisiva na execução do projeto. A presença de um acampamento a parte da equipe de filmagem gera ciúmes por parte de alguns dos alpinistas. Ao fim, os alpinistas acusam a equipe de filmagem de atrapalhar seus planos, e se recusam a ao menos tentar a escalada. Dizem os alpinistas que eles poderiam subir mas não com a presença das câmeras, e que a possibilidade de um acidente fatal da equipe técnica lhes coloca uma responsabilidade brutal. A cineasta e produtora (Monica Schmiedt) contra-argumenta, dizendo que na verdade essa é uma desculpa para o verdadeiro motivo da não-escalada: o medo e a incapacidade individual. Instala-se então uma grande lavagem de roupa suja, que coloca em xeque a própria realização do documentário. O filme passa a problematizar de forma extremamente aguda seu próprio processo de realização. O mito da não-intervenção, e do “filme de montanha” rompe brutalmente.

Mas o mais interessante é que o documentário abre mão da sua suposta imparcialidade e passa a nitidamente defender sua posição, e acusar os alpinistas. Torna-se um trabalho extremamente rancoroso. Em nenhum momento, a câmera tenta entender as motivações dos alpinistas. Ora, eles devem sentir uma imensa frustração de, após toda a preparação, pararem inerte ante ao pé do monte. Mas o filme volta-se para si mesmo, e abandona seu objeto de estudo; rompe com ele. Passa a acusar, difamar os alpinistas, tentar defender a si mesmo. Passa a ser um espelho do processo de frustração de seus produtores, e não dos alpinistas, em última instância o objeto do filme. Abandona a imparcialidade: só edita os trechos que interessam a si mesmo, manipula nitidamente o material filmado. Sente-se então todo o peso do processo: ora, assim como houve uma enorme preparação dos alpinistas, houve um enorme esforço por parte dos cineastas, seja para captar recursos, para convencer os investidores, para preparar, organizar toda a parte logística necessária para a execução do projeto. O filme passa a ser pura metalinguagem. E a magia do documentário é essa: tudo está prestes a acontecer. É da natureza do documentário. Mônica não é nada generosa: ela achou que perdeu o filme, perdeu a grande chance de fazer o projeto da sua vida, e ela se esforça em terminar o filme, até porque ela precisa prestar contas, etc. Mas o filme vira uma outra coisa, não-didática, menos óbvia. Vira um produto vivo, torturante, angustiante, cheio de contradições.

Os alpinistas realmente desistem de subir o monte. O filme acaba com a equipe empacotando as coisas, e pegando o barco de volta para casa, com a missão não-cumprida. O clima é pesadíssimo. O último plano de Extremo Sul é um plano síntese. Sentada na proa do barco, com o monte ao fundo, vemos um close de Monica Schmidt, cineasta e produtora, cabisbaixa, sem nenhuma palavra. Um plano-sequência de quase um minuto. Corte seco. Fim. Plano-síntese: o filme acaba na decepção do próprio filme em não ser feito. Ele poderia muito bem ser um plano de um dos alpinistas, mas não, o objeto de estudo não vem mais ao caso. É um filme sobre a percepção do fracasso do próprio filme: trata-se de uma mórbida autobiografia. Narcisista, egoísta, necessária, contundente.

Assim, Extremo Sul passa a ser um documentário sobre o Brasil, sobre o cinema brasileiro, sobre o fracasso da experiência humana em vencer os desafios da vida, sobre os limites da existência humana. Uma grande e inesperada porrada. Sem dúvida, o mais instigante filme brasileiro do ano, até agora.

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