Ricardo Calil sobre Nina
Texto espetacular sobre o filme Nina, uma das melhores críticas que li recentemente: texto enxuto, sem pedantismos, contundente mas respeitoso, e que compartilha EXATAMENTE a impressão que tive do filme.
Nominimo.com.br
Ricardo Calil
Dostoiévski Fashion Week
04.11.2004 Existem várias maneiras de modernizar uma obra literária. A escolhida pelo filme brasileiro “Nina”, livre adaptação de “Crime e Castigo” que chega hoje aos cinemas, é a do literalismo lusitano.
Para o cineasta estreante Heitor Dhalia, modernizar o clássico de Dostoiévski significa espalhar pela tela signos de uma suposta “modernidade”: uma protagonista bissexual, um apartamento com visual retrô-chic, amigos da cena clubber, trilha sonora de música eletrônica, seqüências de animação e assim por diante. Em alguns momentos, o filme se parece menos com uma adaptação de “Crime e Castigo” do que um desfile da Dostoiévski Fashion Week.
Não há nenhum problema em transpor a ação da São Petersburgo do século 19 para a São Paulo de hoje. Mesmo porque, apesar da diferença no tempo e na geografia, existe um ponto de contato fundamental entre as cidades: as duas são terras de contrastes.
A São Petersburgo de “Crime e Castigo” (1866) era uma cidade com ricos palácios ocupados pelos poderosos locais, cercados por cortiços miseráveis onde se amontoavam bêbados, bandidos e prostitutas. Não é preciso detalhar muito a comparação para encontrar semelhanças com a São Paulo de hoje.
Raskólnikov, o pequeno-burguês sem rumo que protagoniza “Crime e Castigo”, circula por casas, becos e tavernas fétidas da capital russa. Não seria difícil encontrar uma boa tradução visual desse universo na São Paulo de hoje. Mas Dhalia confunde o decadente submundo russo com o afetado “underground” paulistano.
Nina, uma garota vinda do interior que vive de bicos e não consegue pagar o aluguel, se move por apartamentos, lanchonetes e clubes que parecem saídos de uma revista de decoração. As putas, os drogados e os cegos do filme são elegantes como modelos.
O cineasta pode sempre argumentar que a obra é apenas livremente inspirada em “Crime e Castigo”, que não há problemas em alterar a aparência do universo retratado, desde que se mantenha a essência do livro. Mas é aí que reside o principal problema de “Nina”.
O filme concentra esforços no visual e se esquece do essencial de “Crime e Castigo”: a discussão moral sobre o assassinato, suas justificativas e conseqüências. Raskólnikov planeja matar uma velha usurária não apenas porque precisa de dinheiro, mas também porque quer provar que é um ser excepcional, acima do bem e do mal, tal como César ou Napoleão, grandes assassinos absolvidos pela História.
Para ele, seu ato de crueldade poderia ser justificado pela natureza vil da atividade da usurária e também pelo bem que poderia fazer à sua família com o dinheiro que roubaria. Depois do crime, porém, suas teorias são derrubadas pela culpa.
Já a motivação de Nina (Guta Stresser, em interpretação sem nuances) para desejar a morte da senhora que lhe aluga um quarto (Myriam Muniz, em seu último trabalho) está longe de ser metafísica. Ela parece querer assassinar sua senhoria porque esta lhe cobra com justiça o aluguel atrasado, porque é uma velha rabugenta e pão-dura. Há muitos motivos, mas nenhuma moral para os atos de Nina.
Dostoiévski é conhecido pela densidade psicológica de seus personagens, cujos pensamentos parecem ser de concreto. Por outro lado, ele costuma ser acusado de desleixo com o estilo. Com “Nina”, ocorre o contrário: Dhalia filma “bonito”, mas seus personagens não têm profundidade.
Não é que Dhalia não mostre nenhum mérito em seu primeiro longa. Ele soube se cercar de bons profissionais, o que é sempre importante. A trilha sonora de Antônio Pinto é muito boa, as animações de Lourenço Mutarelli são excelentes, a fotografia de José Roberto Eliezer tem alguns enquadramentos criativos, inspirados no expressionismo alemão.
Mas o diretor não soube unir esses elementos para chegar a um resultado homogêneo, o que é a tarefa fundamental de um cineasta. Essa falta de traquejo fica clara na seqüência em que Nina dança nua para um cego que conheceu na rua (Wagner Moura): em vez de funcionar como alívio cômico, a cena parece saída de um freak show.
Em entrevistas antes do lançamento, Dhalia ressaltou o fato de que “Nina” foi planejado nos mínimos detalhes, para que as filmagens fossem mais rápidas e baratas. E a produção passa exatamente essa idéia: muito planejamento, mas pouca reflexão. No começo do filme, uma personagem divide as pessoas entre as ordinárias e extraordinárias. Se fizesse o mesmo com obras de arte, “Crime e Castigo” certamente ficaria na segunda categoria e “Nina” na primeira.
Apenas um último comentário: a quantidade de participações “afetivas” de atores famosos parece uma ostentação desnecessária. Selton Mello, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele e Renata Sorrah, entre outros, aparecem em passagens rápidas e de pouca importância. Esses pequenos papéis poderiam ter sido interpretados por atores menos conhecidos e mais necessitados. Como Raskólnikov, eles seriam capazes de tudo por uma ponta em um filme brasileiro.
Nominimo.com.br
Ricardo Calil
Dostoiévski Fashion Week
04.11.2004 Existem várias maneiras de modernizar uma obra literária. A escolhida pelo filme brasileiro “Nina”, livre adaptação de “Crime e Castigo” que chega hoje aos cinemas, é a do literalismo lusitano.
Para o cineasta estreante Heitor Dhalia, modernizar o clássico de Dostoiévski significa espalhar pela tela signos de uma suposta “modernidade”: uma protagonista bissexual, um apartamento com visual retrô-chic, amigos da cena clubber, trilha sonora de música eletrônica, seqüências de animação e assim por diante. Em alguns momentos, o filme se parece menos com uma adaptação de “Crime e Castigo” do que um desfile da Dostoiévski Fashion Week.
Não há nenhum problema em transpor a ação da São Petersburgo do século 19 para a São Paulo de hoje. Mesmo porque, apesar da diferença no tempo e na geografia, existe um ponto de contato fundamental entre as cidades: as duas são terras de contrastes.
A São Petersburgo de “Crime e Castigo” (1866) era uma cidade com ricos palácios ocupados pelos poderosos locais, cercados por cortiços miseráveis onde se amontoavam bêbados, bandidos e prostitutas. Não é preciso detalhar muito a comparação para encontrar semelhanças com a São Paulo de hoje.
Raskólnikov, o pequeno-burguês sem rumo que protagoniza “Crime e Castigo”, circula por casas, becos e tavernas fétidas da capital russa. Não seria difícil encontrar uma boa tradução visual desse universo na São Paulo de hoje. Mas Dhalia confunde o decadente submundo russo com o afetado “underground” paulistano.
Nina, uma garota vinda do interior que vive de bicos e não consegue pagar o aluguel, se move por apartamentos, lanchonetes e clubes que parecem saídos de uma revista de decoração. As putas, os drogados e os cegos do filme são elegantes como modelos.
O cineasta pode sempre argumentar que a obra é apenas livremente inspirada em “Crime e Castigo”, que não há problemas em alterar a aparência do universo retratado, desde que se mantenha a essência do livro. Mas é aí que reside o principal problema de “Nina”.
O filme concentra esforços no visual e se esquece do essencial de “Crime e Castigo”: a discussão moral sobre o assassinato, suas justificativas e conseqüências. Raskólnikov planeja matar uma velha usurária não apenas porque precisa de dinheiro, mas também porque quer provar que é um ser excepcional, acima do bem e do mal, tal como César ou Napoleão, grandes assassinos absolvidos pela História.
Para ele, seu ato de crueldade poderia ser justificado pela natureza vil da atividade da usurária e também pelo bem que poderia fazer à sua família com o dinheiro que roubaria. Depois do crime, porém, suas teorias são derrubadas pela culpa.
Já a motivação de Nina (Guta Stresser, em interpretação sem nuances) para desejar a morte da senhora que lhe aluga um quarto (Myriam Muniz, em seu último trabalho) está longe de ser metafísica. Ela parece querer assassinar sua senhoria porque esta lhe cobra com justiça o aluguel atrasado, porque é uma velha rabugenta e pão-dura. Há muitos motivos, mas nenhuma moral para os atos de Nina.
Dostoiévski é conhecido pela densidade psicológica de seus personagens, cujos pensamentos parecem ser de concreto. Por outro lado, ele costuma ser acusado de desleixo com o estilo. Com “Nina”, ocorre o contrário: Dhalia filma “bonito”, mas seus personagens não têm profundidade.
Não é que Dhalia não mostre nenhum mérito em seu primeiro longa. Ele soube se cercar de bons profissionais, o que é sempre importante. A trilha sonora de Antônio Pinto é muito boa, as animações de Lourenço Mutarelli são excelentes, a fotografia de José Roberto Eliezer tem alguns enquadramentos criativos, inspirados no expressionismo alemão.
Mas o diretor não soube unir esses elementos para chegar a um resultado homogêneo, o que é a tarefa fundamental de um cineasta. Essa falta de traquejo fica clara na seqüência em que Nina dança nua para um cego que conheceu na rua (Wagner Moura): em vez de funcionar como alívio cômico, a cena parece saída de um freak show.
Em entrevistas antes do lançamento, Dhalia ressaltou o fato de que “Nina” foi planejado nos mínimos detalhes, para que as filmagens fossem mais rápidas e baratas. E a produção passa exatamente essa idéia: muito planejamento, mas pouca reflexão. No começo do filme, uma personagem divide as pessoas entre as ordinárias e extraordinárias. Se fizesse o mesmo com obras de arte, “Crime e Castigo” certamente ficaria na segunda categoria e “Nina” na primeira.
Apenas um último comentário: a quantidade de participações “afetivas” de atores famosos parece uma ostentação desnecessária. Selton Mello, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele e Renata Sorrah, entre outros, aparecem em passagens rápidas e de pouca importância. Esses pequenos papéis poderiam ter sido interpretados por atores menos conhecidos e mais necessitados. Como Raskólnikov, eles seriam capazes de tudo por uma ponta em um filme brasileiro.
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