A Vila

A Vila
de M. Night Shyamalan, EUA, 2004
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Uma das conquistas do cinema é a possibilidade de nos fazer viajar, voltar no tempo, se encantar. A Vila é um filme infantil, no bom sentido do termo, porque é cheio de um desejo por um cinema que parece impossível, por uma vida que parece impossível. Shyamalan quer resgatar a possibilidade de o cinema ainda poder ser verdadeiro, e cada imagem de seu filme tem o desejo ufano de buscar o êxtase e o divino. Desejo repleto de inocência e de impossibilidade, desejo infantil de que o cinema se misture com a vida, Shyamalan filma com o deslumbramento de uma criança que desconhece os limites do seu brinquedo e de sua própria vida. Com isso, assistir a cada um dos filmes de Shyamalan torna-se uma experiência não só única mas absolutamente comovente, porque são absorvidos com essa responsabilidade moral e ética do artista que sem exagero nos faz associá-lo a cineastas do nível de um Tarkovsky ou Dreyer. Mas enquanto para cada um desses a experiência divinamente humana do cinema está relacionada com um trabalho de linguagem particular, o cinema de Shyamalan está condenado a ser um cinema das massas, a ser visto para ser comentado entre as mordidas de um Big Mac. É por entre as próprias contradições do cinema americano e – ainda mais – da narrativa clássica hollywoodiana, que Shyamalan busca a essência de seu cinema: um cinema de impacto, um cinema que busca ser visto, um cinema que não deixa de ser um produto de uma indústria de consumo rápido, em que o lucro está em primeiro lugar.

A Vila é um trabalho complexo, obra de um artista, e diante de um primeiro impacto fica difícil escolher as palavras para melhor defini-lo. De um lado, é um exame cruel e exato das contradições da sociedade americana pós-11 de setembro. De outro, é um exame metafísico da impossibilidade e da necessidade de Deus no mundo contemporâneo. Por um outro, é um olhar particular sobre a miserabilidade da condição humana. Num quarto, sobre a construção de um artifício como forma de suprir o abismo (a farsa como um “pacto social”, ou a representação e o cinema).

Ainda há um tema que é central em A Vila e no cinema de Shyamalan, e se torna impossível não começar por ele. A Vila é um filme sobre o medo do desconhecido, sobre em como não existe vida sem a dúvida. O medo do desconhecido é natural do ser humano, mas em muitas circunstâncias é uma fabricação social. O medo como inato ou como produto de uma sociedade faz Shyamalan se inserir num debate antigo, de Hobbes a Rousseau, mas Shyamalan o faz de um ponto de vista místico ou metafísico, e ainda insere novos elementos como o papel da mídia (Sinais) nesse contexto.

A Vila é obviamente um filme sobre a cegueira, o que nos remete imediatamente a Maeterlinck (Os cegos). Mas aqui se trata de problematizar a questão, mais que simplesmente afirmar a miserabilidade da condição humana (o que o diretor, claro, também aproveita para fazer). Se o desconhecido é uma fabricação, ele por outro lado também existe. A impossibilidade e a necessidade caminham juntas, e Shyamalan busca um cinema no meio da névoa e do pó. Por isso todos os seus filmes tem uma angústia profunda, um sentido de missão.

Para ver um filme de Shyamalan, é preciso ter fé. Quem o tem, sai do cinema transfigurado. Seu cinema é uma experiência mística dentro de um cinema americano cada vez mais “embalado para viagem”. É impossível ver os filmes de Shyamalan em DVD ou VHS.

É preciso ter fé para encarar o desconhecido. Ver A Vila me fez entender melhor o conturbado final de Sinais. Para o projeto de Syamalan, é fundamental que os personagens estejam frente a frente com o desconhecido, e tenham a força para superá-los. O inimigo parece um fantoche, ou um clóvis de carnaval, mas é isso mesmo. O tão poderoso inimigo é desritualizado, dessacralizado, desfigurado pela proximidade. O desconhecido somos nós.

Quem não tem fé, viaja pelas superfícies do cinema de Syamalan: em seus artifícios de roteiro, nas programações dos sustos, no “cinema de suspense”, no trabalho de produção. Mas quem o tem, vira uma criança durante a projeção e, após, sai do cinema transfigurado: para viver talvez seja preciso fabricar e desmistificar uma fé, tão importante e tão abjeta quanto o próprio cinema, quanto a própria vida. Para Syamalan é preciso ter coragem para viver, e essa sua inocência juvenil é acima de tudo absolutamente comovente, e um olhar de um artista completamente absorvido e perturbado em destrinchar os desígnios do mundo e de seu ofício em particular.

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